O Frevo da Orquestra Malassombro
O curso da história é pontilhado por transformações, cujos impactos e consequências alteram em graus variados, as relações culturais, políticas e sociais, plasmando formas de pensar, fazer e sentir. Às vezes essas transformações se apoiam em premissas conservadoras e estanques que embora recepcionem a modernização do fazer, ao incorporar inventos científicos e tecnológicos, permanecem ideologicamente vinculadas ao saudosismo anacrônico, que sempre visa restaurar o passado ideal, fornido de privilégios de classe. Às vezes apontam para mudanças mais incisivas, que aspiram modificar as formas de pensar, fazer e sentir, pavimentando o caminho para transformações mais estruturais no futuro em aberto. O carnaval, para além do encantamento lúdico, musical e imagético, é também caixa de ressonância das contradições sociais que perpassam a sociedade. O frevo, patrimônio imaterial da humanidade, alcançou o apogeu nas décadas de 1950 e 1960, atravessando o país, de ponta a ponta, pelas ondas do rádio. Em 1957, o maior sucesso do carnaval brasileiro, foi o frevo de bloco evocação número 1, composição do maestro Nelson Ferreira, gravada inclusive pelo pianista mineiro Waldir Calmon e seu requisitado conjunto dançante, no disco Uma Noite no Arpège número 2. Diversos fatores contribuíram para essa escalada nacional: a pujança do carnaval do Recife, a excelência dos maestros, músicos, compositores e intérpretes, os festivais de frevo, as revistas carnavalescas produzidas pelas Rádios Clube e Jornal do Comércio, a existência da fábrica de discos Rozenblit e o seu famoso selo mocambo, através do qual difundiu o frevo para outras regiões do país. Em 1984, a fábrica Rozenblit encerrou suas atividades devido as enchentes que assolavam o Recife, a concorrência desigual estimulada pelas gravadoras transnacionais sediadas no sudeste e a crise financeira que abalou os alicerces da empresa. Nos anos 1970, o carnaval e o frevo começaram a declinar, em virtude das restrições e proibições impostas, a partir do controle feroz exercido pela ditadura civil-militar sobre a cultura e os costumes. O caso do maestro José Nunes de Souza, é emblemático. Autor de frevos de rua muito populares, tais como Cabelo de Fogo, É de Perder os Sapatos, Mosquetão, Bomba Relógio, Frevo dos Motoristas e Vamos Encostar, pelo fato de ter participado do MCP -Movimento de Cultura Popular -, no governo de Miguel Arraes, à frente da Prefeitura do Recife, dirigido pelo intelectual Germano Coelho, posteriormente prefeito de Olinda e por integrar o Partido Comunista Brasileiro, foi perseguido e afastado da Banda Municipal do Recife na qual ingressou por concurso, em 1958. No tocante a música, a conjuntura adversa tolhia iniciativas e pouquíssimos ousavam traduzir em letra e melodia, os tempos difíceis até então vividos. Era preferível evitar polêmica e conservar padrões antigos, que no passado garantiram sucesso e protagonismo singular no meio musical. O primeiro grande passo que arejou o frevo, foi o icônico projeto Asas da América, constituído de sete discos, coordenado pelo caruaruense Carlos Fernando. O disco inaugural lançado em 1979, juntou Alceu Valença cantando Pitomba Pitombeira e O Homem da Meia Noite; Chico Buarque interpretando Salve a Torcida; Caetano Veloso cantando Bom é Batuta; Carlos Fernando e Geraldo Azevedo cantando Lenha no Fogo; Marco Polo, da banda Ave Sangria cantando o frevo Ator Folião; e Gilberto Gil e Jackson do Pandeiro interpretando Sou eu teu Amor. Banho de Cheiro, o estrondoso sucesso gravado por Elba Ramalho e Alcione respectivamente, aparece nos discos 4 e 5 da coleção. A produção gráfica também é inovadora. A capa de fundo vermelho, tem um círculo no centro, dentro do qual há o mapa do Brasil, o título asas da américa frevo, encimado por um pistom e um passista com uma sombrinha. Embaixo, no sentido horizontal, duas folhas psicodélicas. Em 2001, surgiu a Spok Frevo Orquestra, formada por excelentes músicos, liderada por Inaldo Cavalcante de Albuquerque (Spok), de sonoridade ímpar, arranjos de alta qualidade, que possibilitam a improvisação, inovando e aproximando o frevo do jazz. Em 2002, despontou a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, sediada no bairro do mesmo nome, na zona norte do Recife, regida por Francisco Amâncio da Silva, o irrequieto maestro Forró. Além do aporte musical arrojado, a OPBH, utilizando técnicas teatrais espetacularizou a forma de apresentação e deu ao frevo uma dimensão imagética, sonora e sensorial incomuns: o frevo espetáculo. Em 2003, o cantor, compositor e professor Silvério Pessoa, encabeçou o projeto Batidas Urbanas Micróbio do Frevo, baseado na obra carnavalesca do paraibano Jackson do Pandeiro. A ousadia nas experimentações, tanto na maneira de cantar, quanto nas orquestrações sampleadas, mexeu com o mundo do frevo e estabeleceu uma nova referência, encorajando as jovens gerações a descobrir caminhos e a ousar mais. É bom salientar, que existem outras contribuições importantes, para o arejamento do frevo. Os dois discos de Eric Dayan: adivinha o que é? E coisa do outro mundo; o frevotron, de Spok, DJ Dolores e Yuri Queiroga; a Orquestra Transversal, de César Michiles e a Orquestra Quebramar, do maestro Marcos FM, etc. Foi nesse contexto de experimentações afoitas que surgiu em 2019, a Orquestra Malassombro, dirigida pelo maestro e bandolinista Rafael Marques, organizada como um espaço coletivo de criação, reunindo instrumentistas, autores e intérpretes da nova cena musical pernambucana. Se propõe a trazer um novo frescor e a revigorar a música carnavalesca para além do carnaval, com arranjos diferenciados e fina execução, nomeadamente o frevo de bloco, modalidade tradicionalmente sublinhada pela nostalgia, pela reminiscência e pelo passadismo saudosista. Os temas convertidos em canções, tratados com irreverência e bom humor, abordam o cotidiano, os encontros e desencontros da rotina diária e os fatos que marcam a vida da cidade. O nome de batismo da orquestra, foi inspirado na decoração da Venda do Bom Jesus, que durante um ano foi sede do grupo. A fachada do imóvel é ornamentada com figuras típicas das assombrosas lendas urbanas recifenses. É a alma penada de Clotilde, a emparedada da Rua Nova, assombrando o imaginário popular. É a perna cabeluda desembestada, na explosão do frevo, botando para correr transeuntes assustados, que juram de pés juntos, que a viram na esquina da Rua da Guia. A Orquestra Malassombro, não se aferra a clichês e a arlequins, colombinas e pierrôs, personagens europeus da commedia dell’arte, transplantados para o carnaval brasileiro. Pende mais para o modernismo iconoclasta de Ascenso Ferreira ao versejar sobre o carnaval do Recife: “meteram uma peixeira no bucho de colombina, que a pobre coitada a canela esticou. Deram um rabo de arraia em arlequim, um clister de sebo quente em pierrô, e somente ficaram os máscaras da terra, parafusos, mateus e papangus e as bestas feras impertinentes, os cabeções e as burras calús, realizando contentes o carnaval do Recife, o carnaval mulato do Recife, o carnaval melhor do mundo”. O propósito da orquestra em cantar o presente, com os pés no chão, um olho no passado e outro no futuro, fica patente tanto nas canções de tom lírico, quanto nas paródias bem humoradas e nas canções mais engajadas, que mencionam tipos azarados e situações políticas tragicômicas. A composição Idade Média, do malassombrado André Mussalem, assim diz:
“Voltei para a idade média
eu já nem sei onde vim parar.
Jesus subiu numa goiabeira
armaram uma fogueira, para me queimar.
Ai que saudade de quando o frevo tocava,
na rua a gente beijava
sem medo de ser feliz.
Ai que saudade de Marx, Fidel e de Mujica,
sentir aquela larica, ao som dos velhos clarins”.
No segundo ano da pandemia, que o bando negacionista tanto alimentou, e sem carnaval de rua, suor e povo, ouvir a Orquestra Malassombro é um alento. O carnaval de 2023 será malassombrado. Evoé Orquestra Malassombro.
Jairo Cabral é mestre em história pela Unicap
Segue playlist da Orquestra Malassombro